A moqueca esquecida no fundo da geladeira
O Espírito Santo ainda é celeiro de excelentes grupos e movimentos musicais. Muitas coisas que se cria por aqui apresentam qualidade estética e conceitual, muitas vezes, acima dos padrões do resto do país. Uma viagem musical da capital ao interior do nosso Estado evidencia o fato de que, apesar de todas as dificuldades, a produção artística deste segmento nunca parou. Um grande destaque para o cenário “underground”, em que as próprias bandas organizam eventos a baixo custo e sem qualquer retorno financeiro.
Vale o questionamento: o que não é “underground” no Espírito Santo atualmente? Pesquisas veiculadas pelo Jornal A Gazeta mostram que grande parte dos capixabas não tem nenhum conhecimento a respeito dos grupos musicais daqui. Os eventos apresentaram nos últimos tempos uma mais que sensível baixa. Isso para não mencionar a venda de discos. A musica capixaba hoje é essencialmente subterrânea, desconhecida das massas, ignorada em seu próprio território.
O que chama bastante atenção é que, há aproximadamente três anos atrás, quem olhava este mesmo cenário via uma realidade bastante diferente. Em meados de 2002, a música capixaba apresentava um salto quantitativo para lá de significativo. A mistura de rock, reggae e congo das bandas Manimal e Casaca ganhava espaço nas ruas e a preferência dos ouvintes nas rádios de todo Estado. Vale mencionar também o “boom” das bandas de reggae como Macucos e Rastaclone. Na época, alguns fatores importantes já sinalizavam a natureza frágil desta prosperidade e condicionaram, de certa forma, e sua decadência. A começar pelas deficiências conceituais advindas do próprio segmento. Os artistas, agências de eventos e a própria mídia local se prenderam a uma fórmula que, a curto prazo, se mostrou desgastada. O conceito de “música capixaba” foi trabalhado de forma muito localizada, tradicionalista e fechada. Não houve em si a preocupação de expandir a contribuição que a nossa cultura poderia agregar na música nacional como um todo. As bandas que utilizavam elementos folclóricos do Espírito Santo se esforçaram pouco em interagir com o restante do país. Ao contrário de outras tendências musicais regionalistas como o movimento Manguebeat de recife, ou mesmo a música grunge da costa oeste estadunidense, a música capixaba não conseguiu exportar sua influência para o resto do mundo e se tornou escrava de um modismo localizado e efêmero.
É certo que os protagonistas da cena musical capixaba na época apostavam em um certa auto-suficiência do mercado local. Bem, outros fatores contribuíram para que esta fosse uma opção irreversivelmente frustrada. Sem dúvida, qualquer leitura deste tipo corre o risco de parecer tirânica, mas me atreverei, com base na minha humilde interpretação, a enumerar dois destes principais fatores.
Um bom exemplo de auto-suficiência de mercado musical no Brasil é a região sul. Ainda que muitos artistas migrem para o eixo Rio-São Paulo com o objetivo de conquistar um sucesso mais amplo no território nacional, quem já foi a cidades como Curitiba e Porto Alegre tem noção da força de sua cena local. As diferenças entre o Sul e o resto do país são discussão batida, não pretendo me alongar nestas disparidades sociais e econômicas de nosso Brasil. Gostaria de chamar a atenção do leitor, especificamente, para a questão da infra-estrutura. A capital do nosso Estado, neste quesito, deixa evidente a precariedade do todo. Em Vitória, são cada dia mais escassos os locais para realização de eventos. Os estúdios de gravação com certo nível profissional são economicamente inacessíveis a grande parte da população e os incentivos são raros e mal-estruturados. Um exemplo é a Lei Rubem Braga de incentivo à produção artística no Estado. O poder público não consegue sequer padronizar os quesitos para julgar os projetos contemplados, quanto mais fiscalizar a execução e o destino da verba pública empregada nestas obras.
Do outro lado da cadeia produtiva está o público consumidor capixaba. No geral, este público é carente de informação e, muitas vezes, a questão da qualidade musical é relevada a segundo plano. Eventos como carnavais fora de época, shows com os mesmos artistas e com as mesmas canções executadas exaustivamente pela mídia massificante gozam de amplo prestígio de público. Não pretendo aqui julgar qualquer gênero ou, de maneira preconceituosa, desmerecer a diversão desta moçada. Mas o fato é que, na maior parte das vezes o público leva outras coisas em consideração na hora de escolher seu programa de fim de semana. O capixaba quer saber “onde está o rock?”, onde tem mais cerveja, pegação e menos “gente feia”...porque “gente feia ninguém merece”, não é?
Enquanto isso, nós assistimos uma verdadeira debandada de artistas capixabas para os grandes centros produtores das tendências culturais do Brasil. Agente torce para que o Dead Fish venha a Vitória no fim do ano e esquece que, por mais de dez anos, os caras tocaram em lugares apertados e precários, a dez reais a entrada, bem perto de nossas residências. Pessoalmente espero que algo um dia mude realmente. De quem isso depende? Podemos começar por nós mesmos. Vá ao shows. Conheça as bandas. Se gostar e quiser, compre os discos. A produção é rica e ininterrupta. Em outras palavras: Saia de casa, tem muita coisa acontecendo perto de você.